Depois de décadas de uma Globalização voraz e que se estendeu a praticamente todas as esferas do comportamento humano (cultura, língua, economia, finanças, economia, etc) estamos hoje na antecâmara de uma crise sistémica de proporções ainda hoje difíceis de avaliar. Com efeito, a “crise da dívida” vivida de forma especialmente aguda nos países do sul da europa, mas que se estende – com variações locais – a praticamente todos os países da OCDE, é apenas um epifenómeno: uma primeira fase de uma Crise global que não deixará nada como estava antes da sua erupção. Esta Crise resulta da confluência de vários fatores, que se intensificam mutuamente e que contribuem de forma cruzada e cúmplice para uma transformação civilizacional que talvez encontre paralelo apenas no momento em que se deu o colapso da estrutura mais perene da História europeia: o Império romano do século V d.C.
Como aquando da queda do Império Romano, este fenómeno de transição civilizacional não será rápido. Mesmo neste mundo imediatista e acelerado de hoje, o processo de declínio, crise e ascensão de um novo modelo civilizacional leva décadas a desenvolver-se. No final da Idade Clássica, Roma vegetou num lento declínio que demorou quase duzentos anos. Neste “tempo rápido” de hoje, propiciado pela tecnologia e pela ciência, o processo é mais célere: não é agora medido em “séculos”, mas em “décadas”. Mas estamos já bem imersos neste período de transição… entrando agora em força no período de Crise, após o qual (também com inédita rapidez) se seguirá o período de Ascensão. E que Ascensão será esta? Será a tomada do lugar cimeiro global enquanto poder de influência mundial da China e das outras ditas “potências emergentes”, Rússia, Índia e Brasil?
Não é essa a nossa convicção. A China é um gigante com muitos pés de barro: não é uma entidade nacional coesa, contém em si muitas forças centrífugas que apenas se mantêm agregadas no Estado chinês devido ao caráter autoritário, colonial, censório e violento do mesmo: nacionalismos arreigados (no Tibete e Xinjiang), acumulação de níveis de corrupção apenas suportáveis devido a uma censura férrea e global, um descontrolo ambiental e ecológico que potencia uma sucessão de catástrofes locais e globais que levarão ao descontentamento das massas contra os responsáveis corporativos e governamentais. A China de amanhã será pouco semelhante a esse gigante global, coeso e uniforme que hoje conhecemos: a ascensão da classe média, com acesso crescente à informação e cultura, aos modelos democráticos ocidentais e cada vez mais crítica de um regime corrupto, venial, autocrático e profundamente danoso para o ambiente, vai levar a um aumento da exigência de controlos democráticos e logo, ao colapso a curto prazo do regime comunista chinês. Sem a autocracia, o gigante não se conseguira manter unificado, e como sucedeu com a União Soviética na década de 1990 e assistiremos a uma divisão do Estado chinês numa multiplicidade de Estados, perdendo assim a China a capacidade para se afirmar como uma super-potencia global, una e coesa.
Dos restantes BRIC, não vemos também quem esteja em condições de assumir esse protagonismo global, roubando-o aos EUA ou mesmo a uma cada vez mais desunida Europa: a Rússia tem em mãos uma catástrofe demográfica de grandes proporções (especialmente no seu extremo oriente); a Índia padece de uma gigantesca massa populacional que vive em extrema pobreza de uma forma crónica e duradoura e é consumida por um gigantesco gasto em Defesa devido a uma tensão permanente com o seu vizinho nuclear paquistanês e com a sua própria população islâmica. O Brasil tem dado sinais encorajadores de robustez no seu sistema democrático e judicial, assim como na saída sustentada de largos milhões dos seus cidadãos da miséria mais extrema, mas continua tendo um grande problema educacional por resolver, forças armadas muito aquém das necessidades de uma potência de âmbito mundial e, sobretudo, padece de uma atitude diplomática provinciana e tacanha, sendo incapaz atualmente (e no futuro próximo) de influenciar decisivamente a condução dos destinos mundiais mais além do que as suas fronteiras nacionais imediatas.
Este mundo futuro, o do próximo período de Ascensão, não será tão simples como desenham alguns geoestrategas: não será uma deslocação simples de eixo do Atlântico (EUA-Europa) para um mundo centrado na China ou para um mundo multipolar (Rússia, China, Índia e Brasil), dadas as fragilidades e contradições acima listadas destas novas potencias. O mundo da Ascensão, será ainda mais complexo, imprevisível e disperso em centros de poder e influência que o antevisto pelos teóricos do multipolarismo: será um mundo onde o papel do Local, da Comunidade e do Cidadão será extrapolado até um patamar difícil hoje de vislumbrar com clareza, mas em que a tecnologia, o desenvolvimento das comunicações, das redes colaborativas e da ciência permitem hoje antecipar de uma forma mais ou menos clara: depois da ditadura Global imposta pelos Grandes Interesses financeiros e das megacorporações multinacionais, teremos um mundo Local, num movimento pendular que devolverá aos cidadãos uma parte da sua liberdade sequestrada por estes Grandes Interesses e pelo asfixiante processo da Globalização neoliberal em que hoje vivemos.
Neste mundo da Ascensão, as formas de Democracia Participativa serão comuns, fruto deste movimento pendular que transformou a Democracia Representativa num dócil e formal instrumento do poder dos Grandes Interesses. Neste mundo, a importância das grandes megapoles será menor, não só porque estas se tenderão a dividir em entidades administrativas menores (“small is beautiful”), mas porque o iminente colapso dos sistemas de distribuição de água, alimentos e energia colocara em questão a capacidades dos Estados para suportarem essas grandes cidades com milhões de habitantes. De facto, as grandes crises de produção de alimentos que se anteveem hoje, de esgotamento dos recursos aquíferos em muitos países do mundo e o próprio alcançamento do Pico Petrolífero levarão a um recuo demográfico global sem precedentes na História mundial, a um refluxo demográfico para o mundo rural e a uma dispersão das massas humanas por pequenas comunidades rurais economicamente mais sustentáveis, autónomas e menos interdependentes que as grandes moles urbanas da atualidade.
O futuro é Local. O mundo da Ascensão que se seguirá a esta fase de Crise que agora está apenas a começar é mais Local que Global, menos megaurbano, e mais rural, menos de escala e mais do cidadão. Não será necessariamente um mundo melhor, mas será necessariamente mais humano que a realidade alienada e desumana que hoje vivemos.
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