
Clara Ferreira Alves (www.truca.pt)
“Em época menos recuada, concedeu Clara Ferreira Alves, na qualidade de diretora da Casa Fernando Pessoa, uma entrevista a um jornal diário, na qual declarava que não lhe interessava nada o “lado religioso” de Fernando Pessoa, faceta que a senhora, de resto, considerava “detestável”.
Pedro Martins
Nova Águia 7
Ignorar ou – pior – desprezar o lado religioso ou para-religioso do pensamento pessoano é escolher ignorar a parcela mais importante do pensamento político e filosófico de Fernando Pessoa.
A latitude religiosa e mental do pensamento e da ação humana é essencial para a realização do indivíduo e desprezá-la (como fez Clara Ferreira Alves) é procurar tornar a Pessoa numa máquina biológica, destituída de mais propósitos além dos reprodutivos e alimentares. E o Homem é imensamente mais do que isso… o aspeto religioso do Homem é determinante nas decisões pessoais e comunitárias desde sempre e condicionou e condicionará sempre as grandes decisões. Na Expansão portuguesa, essa pulsão foi determinante (por muito que António Sérgio não acreditasse nela) e ainda que o mundo contemporâneo possa parecer a-religioso ou mesmo anti-religioso não o é de facto, sob a superfície… os valores fundamentais da sociedade seguem sendo de base judaico-cristã, assim como as motivações finais, pessoais e coletivas e o Lucro não é o “deus” último e acabado que se pensou ser, havendo sinais claros que o paradigma económico está a começar a dar sinais de mudança: empresas cooperativas, índices de felicidade, aquecimento global, preocupações ecológicas e de sustentação ambiental começam a penetrar grande parte das atividades humanas e poderão ser dominantes no mundo económico e social que se seguirá a esta grave crise atual…
por estas e por outras é que o ‘ateísmo’ há muito que se constituiu na pior das religiões que assolam o Ocidente
1 – em primeiro lugar, qualquer disputa tida no campo da transcendência… é uma disputa transcendente. logo, qualquer tentativa de desconstrução laborada em função da ‘existência de Deus’ sujeita-se estritamente à afirmação do seu conceito; pelo que contribui para a própria – tão antagonizada – dialética de construção religiosa
o único verdadeiro ‘ateísmo’ deveria ser o ‘ateísmo pragmático’, chamado também ‘apateísmo’. contrariamente à posição do crer, a posição de ‘transcendência? não sei nada disso. não sei nem me interessa!’
http://en.wikipedia.org/wiki/Apatheism
2 – porque, para além da essência dúbia, o próprio ‘ateísmo’ só é válido numa óptica de simplificação de albergue espanhol para uma gigantesca mescla de sensibilidades, entendimentos e posições díspares
a partir do momento que existe uma diferença basilar entre ‘teísmo’ e ‘deísmo’, a proposta – supostamente antagónica – de um ‘ateísmo’ dorme automaticamente com os pés de fora da discussão
e é revelador que a tentativa de homogeneizar o ‘ateísmo’ saia mais difícil do que uma definição comum das diferentíssimas formas de crer e interagir com o transcendente…
3 – acontece que o ‘ateísmo’, nascido com EXACTAMENTE ESSE SENTIDO – oposição à estruturação da grença religiosa em sistemas organizados -, resvalou de há anos para uma perseguição não só ontologicamente absurda [v. ponto 1] como mais violenta que a experiência religiosa que visa ‘erradicar’
http://en.wikipedia.org/wiki/New_Atheism
cavalgando no ‘conhecimento científico’ – absurda ferramenta de uma área da experiência humana que rigorosamente nada tem a ver com a religião – o ‘neoateísmo’ exibe garras e caninos afiados na tentativa de exposição, ridicularização e eliminação de qualquer prática ou crença religiosa das ‘oprimidas’ sociedades ocidentais. mesmo que sob a capa de coisas soft e fofas como os bucólicos ‘Brights’
http://en.wikipedia.org/wiki/Brights_movement
i. é, sob argumento de ‘crimes do pai’ (as estafadas ‘cruzadas’, as estafadas ‘inquisições’, os estafados ‘extremismos’), é acossado todo aquele que professa individual ou colectivamente uma crença transcendente, quando a sua crença em nada vincula ou atropela o tão ‘bright’ ‘ateu’ que por força lhe quer entrar na cabeça e dar uma geral
4 – é esta a cara de uma CFAlves tão fresca, bem-pensante e representativa da ‘intelectualidade’ tuga, europeia e cosmopolita actuais
o Homem – na sua opinião – é um ser fatiável, com peças supérfluas que só o engordam, lhe pesam e só o retraem. o Homem – o SEU Homem ! – é uma realidade compartimentada de que é possível arrancar bocado para ficar mais perfeito. e, claro!, CFAlves presta-se a essa poda. porque ela a deseja. porque ela, claro!, a sabe fazer. e para o nosso bem. despojar-nos de uma parte nossa que a incomoda, para ficarmos todos um bocado mais parecidos com ela
felizmente pessoas como Fernando Pessoa permanecem firmes e altivas como símbolos do Indivíduo Completo, cujas mil partes fazem um todo maravilhoso. um Todo admirado universalmente, mesmo que por aqueles a quem paga as côdeas para a boca seja estropiado e assim desprezado como Homem
Bem, estou a ver que esta questao ja te me mereceu amplo (e fundado) pensamento…
Nao vou acrescentar muito ao que escreveste, apenas dizendo que:
Por pura “formatacao” mental e genetica, o Homem tem uma amplitude religiosa ou transmaterial. Seja ela “real” ou “fisica” a verdade ‘e influi de sobremaneira no curso das civilizacoes e do pensamento humano individual e coletivo. Descartar assim como irrelevante a dimensao religiosa do Homem (como fez Clara Ferreira Alves) ‘e adotar uma atitude de tacanhez mental, que impede uma compreensao total (e logo correta) do pensamento pessoano.
…e se Pessoa é grande, meu Deus !! 😉